Logo quando a operação Zelotes flagrou grandes figurões da elite brasileira em práticas criminosas, a presunção de inocência resolveu dar o ar da graça.
Antonio Lassance (*)
Nada como um dia após o outro. De repente, não mais que de repente, um editorial de O Globo considera o padrão Moro de "justiça" muito perigoso.
No texto "Lava-Jato inspira proposta de mudança na Justiça",
o jornal relata que juízes, "Sérgio Moro um deles, defendem que penas
sejam cumpridas a partir da sentença de primeira instância, ideia
perigosa, mas que Congresso precisa debater".
Ideia
perigosa? Como assim? Desde quando? Que curioso, não? Se prender
suspeitos e mantê-los trancafiados até que confessem o que sabem e o que
não sabem foi saudado até agora como um bom padrão de execução da
judiciária, que medo é esse de uma sentença condenatória em primeira
instância?
Manter o réu preso sem julgamento pode, mas prendê-lo depois do julgamento não pode? Estranho raciocínio. Muito estranho mesmo.
É
muita coincidência que essa... tomada de consciência - chamemos assim -
tenha acontecido quando um escândalo de proporções muito maiores do que
qualquer petrolão evidenciou algo banal, trivial, óbvio: o maior
escândalo de corrupção de todos os tempos, em qualquer época, em
qualquer país, é a sonegação dos ricos, estejam eles ligados a que
esquema for - do petrolão ao suíçalão do HSBC e, agora, ao esquema
desbaratado pela operação Zelotes, da Polícia Federal.
Logo
quando a Zelotes flagrou grandes figurões da elite brasileira em
práticas criminosas, vis, tão dignas de escárnio quanto qualquer propina
intermediada por doleiros, a presunção de inocência resolveu dar o ar
da graça. Justo ela que andava tão sumida.
Justo
agora que, entre outros, uma afiliada das organizações Globo (a gaúcha
RBS) aparece na mira das investigações, se resolve falar novamente, alto
e bom som, em presunção de inocência.
Esperemos
para ver que juiz vai ter a coragem - não é assim que se chama? - de
prender tais figurões e fazê-los ver o sol nascer quadrado até que
confessem seus crimes já expostos e supliquem por delações premiadas. Se
tem dinheiro público, se tem propina, sem tem lavagem de dinheiro, não
vai ter prisão? Agora não vai ter? Por quê?
Afinal,
O Globo está com medo de quê? Esse editorial terá sido feito por gente
que nasceu ontem? Quem o escreveu não sabe que o padrão Moro de
qualidade judicial já é corriqueiramente aplicado em nossa Justiça?
Em
média, mais de 40% da população carcerária brasileira é formada por
presos em situação provisória, ou seja, não têm condenação definitiva.
Em alguns presídios, o número de presos provisórios ultrapassa 60%.
Depois
de ter premiado Moro com o prêmio "Faz Diferença" de personalidade do
ano, quem sabe o jornal não se disporia a conferir um troféu "Sérgio
Moro" a presídios com as estatísticas mais altas de gente presa sem
condenação, aguardando delações premiadas e julgamento a perder de
vista?
O Globo assustou-se e alerta:
o "Congresso precisa debater". Claro! Os leitores de O Globo, pelo
menos aqueles que não nasceram ontem, entenderam bem que a sugestão do
jornal é para que a proposta encontre o caminho certo para ser imediata e
solenemente sepultada, com o sinal verde de aplausos em futuros
editoriais.
A defesa da presunção
de inocência por parte de uma mídia que se vende, diariamente,
atropelando essa mesma presunção de inocência mostra o quanto muitos de
seus editoriais são meros exercícios de hipocrisia, assim como os
pedidos de desculpas por seu golpismo entranhado.
A
presunção de inocência de muitos veículos é ditada por um cálculo de
conveniência. Tem dia em que ela está valendo, tem dia que não está.
Justiça
seja feita, há momentos em que a grande e tradicionalíssima imprensa
esforça-se muito e dedica todo amor e carinho a proteger a reputação de
seus políticos prediletos, a ponto de até mesmo parentes envolvidos em
escândalos serem chamados de "supostos parentes" - uma expressão que já
deveria estar nos manuais de redação desses luminares.
Precisou
da Zelotes para a turma de O Globo se lembrar que a Justiça, em
qualquer lugar, é feita não apenas de leis, mas de juízes e de
precedentes.
Juízes tratados como
astros de rock se engraçam a dar seu show à parte e rasgam a lei como
quem quebra a guitarra em pleno palco. Quem precisa delas - da lei, da
guitarra? Os precedentes que alguns juízes criam podem ser ainda mais
graves, pois tornam-se regras que, longe de serem uma homenagem às leis,
espezinham-nas.
Que tipos de
juízes preferimos? O Globo prefere um que atenda aos seus caprichos e
proteja seus amigos diletos - convenhamos, um "princípio" que é o fim de
qualquer noção razoável e responsável de justiça.
(*) Antonio Lassance é cientista político.
Texto original: CARTA MAIOR
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