JORNALISMO EM MG
Réquiem para a mídia mineira
Como as pessoas, os veículos de mídia nascem, crescem e morrem. Alguns chegam ao apogeu admirados e respeitados. Outros são menos reverenciados e podem até, em determinado momento, atingir um patamar tal de execração que equivale à morte. Razão pela qual esta morte tem início bem antes de seu fechamento formal.
Como as pessoas, cada mídia tem sua data de criação e, raramente, morrem todas ao mesmo tempo. Em Minas Gerais, no entanto, este raro fenômeno de morte coletiva está sendo observado.
Na contramão do que determinam a técnica e a ética jornalísticas, a maioria esmagadora da mídia mineira com sede em Belo Horizonte (aí incluídos jornais, rádios e TVs) distorceu, minimizou, manipulou e alguns simplesmente até ignoraram o resultado da auditoria realizada pelo governo Fernando Pimentel (PT) envolvendo os 12 anos de gestão do PSDB no estado.
Divulgada no dia 06/04, durante entrevista coletiva convocada pelo governador, a auditoria recebeu o nome de Diagnóstico da Situação Atual de Minas Gerais e está dividida em 10 áreas, que cobrem aspectos-chave da realidade do estado.
O diagnóstico pode ser acessado através do site www.diagnostico.mg.gov.br.
Com a divulgação, Fernando Pimentel cumpriu com a palavra empenhada no discurso de posse: em 90 dias, apresentar para a população o relatório detalhado da situação em que recebeu o estado.
A tarefa coube a Mário Vinícius Spinelli, que realizou trabalho semelhante em São Paulo, na condição de controlador-geral da Prefeitura, nos primeiros tempos da gestão de Fernando Haddad. Spinelli, à frente de uma equipe, vasculhou contas, licitações e contratos e o que encontrou deveria estar tirando o sono de muitos tucanos e de seus aliados, pois jogou por terra tudo o que foi alardeado sobre as maravilhas do “choque de gestão”.
Notícia escondida
O diagnóstico apontou um déficit orçamentário de R$ 7,2 bilhões, com 497 obras paralisadas, mais de 600 metros cúbicos de remédios vencidos, déficit de 30 mil vagas nos presídios e acúmulo de dívidas de R$ 94 bilhões. Só a Cidade Administrativa, menina dos olhos da gestão de Aécio Neves, consome R$ 120 milhões por ano. A obra, que custou R$ 1,7 bilhão, não gerou economia com alugueis e só com jardins e manutenção do mobiliário são gastos R$ 10 milhões por mês.
Por dever de ofício, a mídia deveria ter publicado os principais aspectos deste diagnóstico, ouvindo o governador e membros de sua equipe, para detalhar os problemas apresentados e também, por compromisso com o contraditório, divulgar as justificativas, críticas e pontos de vista dos integrantes das gestões anteriores, em especial dos ex-governadores Aécio Neves e Antônio Anastasia. Nada disso foi feito.
O jornal Estado de Minas publicou, na edição de 07/04, dia seguinte à apresentação do diagnóstico, uma discreta chamada de capa (em apenas uma coluna, no alto direito da página, sem foto) sob o título de “Pimentel: ‘Situação é crítica’. Tucanos rebatem”.
Internamente, o jornal dedicou duas páginas da editoria de Política ao tema. Na primeira, sob o versal “Balanço”, a publicação assinala que o chamado choque de gestão foi contestado durante a apresentação pelo governador Pimentel, do diagnóstico sobre a situação das contas do estado.
Em seguida, a matéria tenta relativizar os problemas, assinalando que “o levantamento foi divulgado em meio a uma crise que aflige todos os estados diante do quadro de recessão com o fracasso da política econômica do governo federal”.
E, antes mesmo de apresentar aspectos do diagnóstico, a matéria assinala que “o contra-ataque do PSDB veio rápido: poucas horas depois da divulgação do balanço pela equipe de Pimentel, o partido rebateu os números tópico por tópico, seguindo o modelo apresentado pelo atual governador”.
A página seguinte, cuja manchete é “Tucano acusa governo de montar teatro”, dedica-se integralmente à entrevista com um deputado estadual, escolhido como porta-voz do PSDB, e à íntegra da nota do partido sobre o assunto. Curiosamente, não há nenhuma manifestação dos ex-governadores Aécio Neves e Antônio Anastasia. O jornal não os procurou? Eles se recusaram a falar? Nada disso é informado ao leitor.
A edição de 07/04 do jornal Hoje Em Dia não foi encontrada nas principais bancas e pontos de venda em Belo Horizonte. Ao contrário do que se possa imaginar, ela não esgotou. Simplesmente não chegou a estes locais. Na versão eletrônica, a publicação dedicou uma única matéria ao assunto: “Oposição volta a rebater diagnóstico do governo de Minas”.
Avaliação de quem?
O jornal O Tempo foi o único a tratar o diagnóstico em manchete de primeira página na edição do dia 07/03: “Relatório de 100 dias repete críticas, mas evita denúncias”. Já o versal tem o nítido objetivo de minimizar o quadro: “em apresentação de nove minutos, Pimentel apontou falhas na gestão tucana e diz que a situação é ‘crítica’”.
Internamente, a publicação dedica quatro páginas ao assunto, valendo-se de matérias, fotos e infográficos. Em nenhuma delas aparecem os ex-governadores Aécio Neves e Antônio Anastasia. O político mais graduado ouvido para defender os tucanos é o ex-governador tampão Alberto Pinto Coelho (PP), que concluiu o mandato de Anastasia.
O Tempo chega ao cúmulo de publicar um minibox, sob o título “Aécio-Resposta”, em que é dito o seguinte: “Os senadores e ex-governadores Aécio Neves e Antônio Anastasia não comentaram os dados. Internamente, a avaliação foi que não era preciso convocá-los, pela falta de acusações fortes.”
O jornal não explica se este “internamente” refere-se aos tucanos ou ao próprio jornal. Também não explica o que consideram “acusações fortes”. Seja como for, fica visível a tentativa de não associar o nome e a imagem dos ex-governadores aos graves problemas apontados pelo diagnóstico nas gestões deles.
Apesar de Belo Horizonte contar com seis canais de TVs abertas (cinco afiliados de redes nacionais) e um local, TV Minas, emissora educativa de propriedade do governo do estado, a cobertura que realizaram sobre os resultados deste diagnóstico foi mínima. A maioria fez apenas registro sumário do fato. Quanto à TV Minas, sua programação e seus telejornais locais (hoje reduzido a um único) estão de tal forma sucateados, que não teve condições para uma cobertura minimamente adequada. Some-se a isso que o principal telejornal por ela exibido continua sendo o Jornal da Cultura, produzido pela TV Cultura de São Paulo. Um telejornal que, há muito, vem sendo denunciado como uma espécie de house organ dos tucanos paulistas.
Nas emissoras de rádio, a cobertura do diagnóstico não foi diferente. Apesar de a capital mineira contar com mais de três dezenas de emissoras (entre AMs e FMs), a grande maioria é constituída por “caixas de música” e “templos eletrônicos”. Vale dizer: rádios que apenas tocam música ou são ligadas a igrejas, sobretudo evangélicas. A rádio Itatiaia, a principal do Estado, confirmou a fama de “velha amiga dos tucanos”, enquanto as edições locais da CBN (Organizações Globo) e BandNews (Grupo Bandeirantes) trataram do assunto com superficialidade tamanha que beirou à irresponsabilidade.
Omissão de gastos
Nos dias seguintes, o assunto não mereceu qualquer repercussão. O diagnóstico simplesmente sumiu da mídia mineira. Nenhum jornal, emissora de rádio ou TV se preocupou em saber o que pensa dele empresários, especialistas, líderes sindicais, artistas, trabalhadores, estudantes, enfim a população de Minas Gerais. Fato impensável em qualquer lugar em que a mídia seja minimamente séria. Afinal, os problemas apontados dizem respeito não só ao passado recente como o futuro para uma população de quase 20 milhões de habitantes.
Escrito em linguagem simples, acessível e bem detalhado, este diagnóstico merece ser lido. Nele estão abrangidas áreas como Educação, Saúde, Desenvolvimento Social, Gestão, Obras, Agricultura e Cultura. Sente-se falta, no entanto, de um item crucial em todas as sociedades contemporâneas, o relativo à mídia. Em outras palavras, o diagnóstico omite os gastos do Executivo estadual nos últimos 12 anos com propaganda (incluindo também o de empresas estatais como Cemig, Copasa e Codemig) e o que foi feito em relação às emissoras governamentais.
Com estas omissões, o diagnóstico perdeu uma excelente oportunidade para deixar registrado, por exemplo, quanto o governo de Minas gastou com propaganda durante as gestões de Aécio Neves e Antônio Anastasia. Gastos que qualquer mineiro sabe que foram vultuosos, dada à avassaladora quantidade de propaganda que caracterizou estas administrações. Extraoficialmente, comenta-se que estes gastos superaram a cifra de R$ 2 bilhões.
Excelente oportunidade foi perdida, também, ao não se registrar a situação em que se encontram a TV Minas Cultural e Educativa e a Rádio Inconfidência, ambas de propriedade do governo do Estado. TV Minas e Rádio Inconfidência foram vítimas do desmonte permanente e sistemático por parte dos tucanos. Aliás, a única coisa que os tucanos fizeram por elas (ou por eles próprios?) foi a construção de uma nova sede, inacabada, que irá abrigá-las. A exemplo da Cidade Administrativa, o prédio é faraônico, com manutenção muitíssimo cara e terá impacto negativo sobre o minguado orçamento destas emissoras. Construção que está longe de resolver os maiores problemas que enfrentam: salários dignos para seus funcionários e programação em quantidade e qualidade compatível com o interesse público.
A ausência de um tópico sobre estes aspectos é grave e aponta, no mínimo, para uma visão conservadora do governo Pimentel sobre comunicação e mídia. Nos dias atuais, a sociedade exige transparência em relação aos gastos oficiais com publicidade, da mesma forma que nenhuma administração pode ignorar que a mídia governamental deve e precisa ser implementada e voltada para o interesse público.
O quadro lamentável em que se encontra a mídia em Minas Gerais explica o fato de ter chegado ao fundo do poço no quesito credibilidade. As tiragens dos jornais locais são pífias e não ultrapassam a casa dos 30 mil exemplares durante a semana, e 50 mil aos domingos. Mesmo assim, a maior parte fica encalhada, de pouco adiantando promoções variadas. A exceção é o jornal Super, o tabloide sensacionalista editado pela mesma empresa de O Tempo.
O Super é um caso à parte, pois se valendo da fórmula “crime, futebol e sexo”, tem sua tiragem na casa dos 230 mil exemplares diários, à frente de qualquer publicação impressa nacional, aí incluídos os tradicionais O Globo e Folha de S.Paulo. O tabloide não dá, diretamente, destaque a temas políticos, mas sua linha editorial, extremamente conservadora, tem contribuído para disseminar preconceitos e ódios.
Este quadro faz com que nas rodas de repórteres e jornalistas em Belo Horizonte, o quê mais se ouve sejam reclamações sobre demissões injustificadas de colegas, perseguições, censura a notícias por parte dos editores e dirigentes, além do fato de muitos destes profissionais sentirem-se hostilizados pela população. Repórteres do jornal Estado de Minas, por exemplo, ao cobrirem quaisquer manifestações, têm que esconder o crachá que os identifica. O mesmo acontecendo, com frequência, em se tratando das equipes locais da TV Globo. Problemas que têm reflexos diretos no conteúdo da mídia mineira que, se há muito deixava a desejar, agora se tornou dispensável.
Atestado de óbito
Fundado em 1929 e o mais antigo em circulação em Belo Horizonte, o Estado de Minas, que integra os Diários e Emissoras Associados, enfrenta a maior crise de sua história, com sérios riscos de não sobreviver. Além dos constantes cortes de pessoal e de ter colocado à venda sua sede, está em vias de desfazer-se de mais uma emissora. Desta vez a escolhida é rádio Guarani, a caminho de tornar-se mais uma igreja eletrônica.
Nos tempos áureos, os Associados, de Assis Chateaubriand, chegaram a ter o domínio absoluto da mídia mineira, com três jornais, duas emissoras de televisão e meia dúzia de rádios. Até meados de 1964, o Estado de Minas era apenas um entre os 13 jornais que circulavam em Belo Horizonte (12 diários e um semanário). Ter participado ativamente do golpe civil-militar que derrubou o presidente João Goulart garantiu-lhe vantagens e privilégios junto aos novos ocupantes do poder e estes foram usados para destruir concorrentes e perseguir profissionais que não rezavam por sua cartilha.
Em 1987, veio o confronto com o governador Newton Cardoso (PMDB) que redundou na decisão, por parte do governador, de lançar o jornal Hoje Em Dia. Em meados da década de 1990 foi a vez do empresário Vittorio Medioli, então deputado federal pelo PSDB, também em confronto com os Associados, lançar o jornal O Tempo. De lá para cá, o Hoje Em Dia mudou de mãos duas vezes: vendido por Cardoso, foi parar entre as propriedades de Edir Macedo e agora tem à frente um grupo empresarial local. Ao que tudo indica, este grupo apostava na vitória dos candidatos tucanos em Minas e no plano federal. Como a aposta não se concretizou, os comentários são de que o jornal pode ter sua edição impressa encerrada, passando a circular apenas no suporte digital.
Em comum, Estado de Minas, Hoje Em Dia e O Tempo possuem o fato de, ao longo dos últimos 12 anos, terem apoiado incondicionalmente os governos tucanos em Minas Gerais, acostumando-se a generosas verbas de publicidade oficial. Em troca, minimizaram, ignoraram ou mentiram sobre qualquer assunto que pudesse ser negativo ou incômodo aos tucanos.
Desses grupos empresariais, o único que demonstra boa saúde financeira é o de O Tempo, que controla três jornais na capital e outro tanto na região metropolitana de Belo Horizonte. Mas seu proprietário, o ex-deputado Vittorio Medioli, enfrenta problemas, condenado a cinco anos e seis meses de prisão por crime contra o sistema financeiro nacional.
Medioli foi um dos alvos da operação Farol da Colina, da Polícia Federal, que desbaratou um esquema por meio do qual foram enviados ilegalmente para o exterior mais de US$ 3 milhões através da Beacon Hill Service Corporation. Como a pena de Medioli ainda pode aumentar, em função de recurso do Ministério Público Federal, os funcionários de sua empresa estão preocupados e inseguros quanto ao futuro.
Até o início de 2014, as lacunas, distorções e manipulações da mídia mineira em se tratando da cobertura política vinham sendo supridas por um número cada vez maior de pessoas que se informavam através do site NovoJornal, que chegou a atingir a casa de um milhão de acessos/dia. Por ser o único veículo em Minas que denunciava a falácia do choque de gestão e as irregularidades nas administrações tucanas, recebeu por três vezes, a “visita” da polícia, até que seu proprietário, Marco Aurélio Carone foi preso e o site retirado do ar.
Marco Aurélio Carone passou os nove primeiros meses de 2014 em uma prisão de segurança máxima, sem acusação formal e maior parte do tempo incomunicável. Passadas as eleições, foi solto por “ausência de provas” contra ele. O site NovoJornal continua fora do ar, mantendo-se o quadro de censura à mídia em plena democracia. Até o momento, nenhuma das autoridades mineiras (passadas ou atuais) se pronunciou sobre o assunto.
Por tudo isso, para obter informações minimamente confiáveis sobre o que acontece no Estado, a população tem de recorrer aos jornais, sites e blogs de outros estados. O que equivale a um atestado de óbito para a mídia mineira.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade
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Texto original: VI O MUNDO
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