Ricardo Carlos Gaspar (*)
Como era de se prever, passadas as eleições em São Paulo, o Governo do Estado e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp - finalmente trouxeram, de mansinho, para o centro do palco, a crise da água. Crise esta que, alem da estiagem severa que maltrata a região sudeste do país há mais de um ano, é potencializada pela ausência de investimentos significativos na redução da dependência do abastecimento de água da Região Metropolitana de São Paulo – RMSP - em relação ao sistema Cantareira na última década.
Da disponibilidade hídrica de 36m³/segundo, o sistema Cantareira, por intermédio das sucessivas outorgas, supria (até a irrupção da crise, ao longo do último verão) 31 m³/segundo para a RMSP e 5 m³/segundo para a região de Campinas. Com a atual seca, a gravidade do abastecimento hídrico nas duas regiões ficou exposta. A Agência Nacional de Águas – ANA - e o Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica – DAEE – ordenaram a redução da retirada de água em mais de 10 pontos percentuais, e ela se situa hoje em torno de 19,7 m³/segundo.
A conta não fecha: a vazão afluente do sistema registra, em outubro deste ano, valores que não alcançam 5 m³/segundo. A tentativa, por parte da ANA, de redução adicional desses níveis de retirada – o que levaria a Sabesp a admitir, necessariamente, a adoção de um racionamento que hoje é “disfarçado”, e o recuo por parte do governo estadual de um acordo anteriormente admitido nessa direção – provocou a saída recente da ANA do Grupo Gestor da crise do Cantareira. O atual volume armazenado nas represas do Cantareira (4,5% em 15/10, mesmo com a utilização do “volume morto” a partir de maio de 2014) é o mais baixo da história. E os outros sistemas que suprem a escassez do Cantareira (o Alto Tietê e o Guarapiranga) também apresentam níveis críticos de reservação.
O que diz a Sabesp? Em todos, sem exceção, pronunciamentos oficiais de Diretores e Presidente da empresa, se alega que as providências estão sendo tomadas para fazer frente à situação. São elas: o bônus sobre o consumo, a interligação dos sistemas e a redução das perdas de água.
No que diz respeito ao bônus, sua introdução foi tardia, seu alcance limitado e a medida que de fato transformaria sua adoção em algo mais efetivo – a penalização sobre consumo excessivo ou desperdício – não foi levada adiante pelo Governo do Estado, provavelmente por cálculos eleitorais. O resultado final da redução é de apenas 3,4 m³/segundo sobre o consumo total da cidade de São Paulo (de acordo com dados divulgados pela Presidente da Sabesp em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI – instalada na Câmara Municipal de São Paulo para investigar o contrato entre a empresa e a Prefeitura da capital paulista). Isto porque, se 75% da população reduziram o consumo, 25% aumentaram, e o esforço das autoridades estaduais em minimizar a manifestação da crise não contribuiu para consolidar uma radical alteração nos padrões de uso da água na região metropolitana paulista.
Quanto à interligação do sistema, trata-se de providência óbvia numa aglomeração urbana do porte de São Paulo e de uma empresa rentável como é a Sabesp. É o mínimo que se poderia esperar. Tal medida, porem, ao vir desacompanhada de ações mais efetivas de redução do consumo e das perdas do sistema, e na ausência de investimentos significativos na elevação da disponibilidade hídrica na última década, provoca uma sobrecarga imensa sobre o segundo sistema abastecedor da metrópole – o Alto Tietê -, cuja armazenagem beira atualmente os 10% de sua capacidade.
E, no tocante as perdas, tanto físicas quanto financeiras, na distribuição de água, seus resultados até aqui são pífios, embora a Sabesp prometa reduções expressivas para os próximos anos.
Para completar esse quadro de promessas e esperanças vãs, resta a crença na volta das chuvas. Sem negar que o retorno a níveis normais de precipitação seja a única saída imediata da encalacrada em que estamos, a expectativa da volta do regime normal de chuvas, alem de vir sendo sistematicamente adiada pela persistência da seca, se baseia em prognósticos vagos e discutíveis, cujos resultados longe estão de ser unanimidade. Persistem sérias dúvidas de que apenas a volta das chuvas (em volume compatível com o verão) seja suficiente para recuperar a capacidade do Cantareira e evitar uma situação igual ou mesmo pior no período da estiagem em 2015. Alem disso, estudos internacionais que há anos vêm sendo produzidos alertam para os efeitos duradouros da mudança climática em nosso planeta. Algo que as autoridades hídricas do Estado de São Paulo, ao que tudo indica, desconhecem.
Quando da renovação da outorga do Cantareira em 2004, as condições previam – pela Sabesp, a outorgada - a redução da dependência da RMSP em relação ao sistema Cantareira. Nada foi feito. Só com a emergência da escassez o Governo do Estado preparou um decreto de utilidade pública para a área onde serão construídas duas novas barragens que não resolvem o problema, e concluiu a modelagem da parceria público-privada (que ficou mais de dois anos sendo negociada para atender os interesses do setor privado) para a construção do sistema São Lourenço. O uso das águas do Rio Paraíba do Sul, contestado pelo Estado do Rio de Janeiro, para cuja capital suas águas são destinadas, demorará no mínimo dois anos para se viabilizar. Enquanto isso, só nas últimas semanas um tímido Plano de Contingência para situações de crise a Sabesp elaborou – a rigor, nem Plano de Contingência é, pois não contem nenhum cenário para atacar os problemas derivados da escassez na RMSP e se limita a repetir o mantra “bônus/interligação/redução de perdas” -, já que a empresa, desde sua reestruturação dez anos atrás, está mais preocupada em valorizar suas ações no mercado de capitais (inclusive na Bolsa de Nova Iorque, onde seus papéis são negociados) do que cumprir sua missão como concessionária de um serviço público essencial.
Como o Governo do Estado e a Sabesp não fizeram sua parte, investindo em novas barragens e represas, diversificando fontes de captação, controlando significativamente as perdas do sistema e aplicando programas mais eficientes de despoluição de rios e córregos, não há solução de curto prazo à redução dos
níveis do Cantareira sem chuva. Isto não implica que ações de envergadura, estruturais, não precisem desde já ser implantadas, e acompanhadas pela sociedade, minimizando os riscos do futuro.
Em suma, a forma como o Governo do Estado de São Paulo e a Sabesp tratam o tema da escassez hídrica é, no mínimo, irresponsável. Vai na contramão de todas as recomendações internacionais de garantir ampla participação das população na debate sobre o uso de um recurso vital à sobrevivência da espécie. Informações são ocultadas e submetidas a interesses eleitorais de curto prazo, bem como inexistem planos capazes de evitar as drásticas conseqüências sociais, econômicas e ambientais derivadas do quadro de escassez que se avizinha. A tão propalada eficiência da gestão tucana não se sustenta, assim, frente a realidade dos fatos.
(*) Doutor em Ciências Sociais e Professor do Departamento de Economia da PUC-SP.
Texto original: CARTA MAIOR
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