Fábio de Sá e Silva
Quando há aproximadamente um mês, em entrevista à emissora de TV Portuguesa RTP, o ex-presidente Lula afirmou que o julgamento da Ação Penal 470 – o chamado processo do "mensalão" – havia tido muito mais de político que de jurídico, integrantes do Supremo Tribunal Federal trataram de reagir de maneira rápida e desqualificadora.
"Fato grave, que merece o mais veemente repúdio," redarguiu Joaquim Barbosa, no tom em que se acostumou a fazê-lo sempre que se viu questionado, fosse no Plenário da Corte, fosse nas páginas de jornais, por sua conduta como relator daquele caso. "Troço de doido," disse Marco Aurélio, alegando ser impossível medir o jurídico e o político em uma decisão judicial. "Muito engraçado," disse Gilmar Mendes, seguindo na mesma linha de Marco Aurélio.
A precariedade dos limites entre direito e política é questão que sempre animou o pensamento jurídico crítico. E em que pese a tentação de se equipará-los, até mesmo para se denunciar o caráter ideológico das correntes ditas legalistas, mais tarde tornou-se não apenas inevitável, mas também proveitoso reconhecer as diferenças estruturais entre um e outro.
A política, assim – ao menos em sua expressão genuinamente democrática –, aparece como o terreno no qual o triunfo de uma posição depende de sua capacidade de obter adesão, ou seja, de se constituir como objeto de uma maioria. No direito, a ampla aceitação de uma posição (por uma turma de julgadores, por um conjunto de especialistas, ou mesmo pela população em geral) não é suficiente. Tão ou mais importante é que essa posição consiga se legitimar perante um estoque de textos e reflexões que constituem a memória normativa daquela comunidade.
Quer a política, quer o direito, portanto, são veículos de mudança social. Mas cada um deles possui um código próprio, a partir do qual – ao contrário do que diziam Marco Aurélio e Gilmar Mendes – se torna perfeitamente possível avaliar a integridade das decisões que produzem. A adequação da justiça ao direito adiciona-lhe uma camada de legitimidade. Já a subversão do direito pela política contribui para que ambos sejam deslegitimados.
A juridicidade do julgamento do mensalão esteve sob suspeita desde o princípio, quando repórter de jornal flagrou Lewandovski reclamando que, no recebimento da denúncia relativa ao caso, os Ministros haviam votado "com a faca no pescoço".
Alguns anos depois, quando da leitura do relatório por Barbosa, o processo apresentou inúmeras novidades em relação à jurisprudência do próprio STF, por exemplo, quando não admitiu o desmembramento do caso, considerou corrupção o recebimento de recursos sem o correspondente ato de ofício, ou admitiu a condenação de réus sem provas, com alegada base na teoria do "domínio do fato".
Bastaria, porém, que entrasse em pauta o julgamento do "mensalão tucano" para que esses vernizes escorressem e o signo da politização pudesse de novo se manifestar – não sem antes o mesmo Barbosa ter admitido que, na fixação das penas, havia feito uma conta "de chegada", em que as penas pelo crime de "formação de quadrilha" visavam não a reprovação de uma conduta verificada no processo e sim a garantia de que os réus ficariam presos no regime fechado.
Mas nada disso deu tantos sinais de politização do caso quanto o que se passou a ver depois que os réus já estavam condenados, quando Barbosa passou a presidir a execução das penas. Prisões espetaculares, manutenção proposital de presos em regime mais gravoso, substituição de juízes de instâncias interiores e negativa de análise de pedidos de condenados em função de "regalias" nunca, afinal, comprovadas, marcavam a passagem definitiva de um processo baseado no diálogo com a memória normativa para um processo baseado na imposição de vontade.
É nessas circunstâncias e sob essas condições, pois, que se deve avaliar a decisão de Barbosa no pedido de trabalho externo de José Dirceu, que há meses comprovou ter recebido oferta para cuidar da biblioteca de escritório de advocacia em Brasília. Alegando que presos em regime semiaberto devem cumprir ao menos um sexto da pena a fim de que possam ter acesso ao benefício do trabalho externo, Barbosa indeferiu esse pedido.
Juridicamente, porém, esse entendimento já estava completamente superado entre estudiosos e operadores do direito. Em termos legais, a passagem da legislação que requer o cumprimento de um sexto da pena para a obtenção do benefício do trabalho externo (Código Penal, art. 37) se refere não ao regime semiaberto, mas ao fechado. Ao resgatá-la e aplicá-la fora de seu próprio contexto legislativo, Barbosa mais uma vez parece querer impor a Dirceu tratamento mais gravoso do que aquele que a lei lhe reservaria, desta vez com o bônus de agir, na maior parte das vezes, monocraticamente, ou seja, sem a necessidade de se justificar perante seus pares.
Em termos de política criminal e penitenciária, mesmo as exigências em relação ao regime fechado foram flexibilizadas para permitir a ampliação do acesso da população prisional a postos de trabalho, uma possibilidade que as prisões brasileiras não oferecem a contento para regime algum. É por isso que, mesmo o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, que nesse processo atua como "fiscal da lei", mas também como parte, representando o Estado-acusador, manifestou-se favoravelmente à concessão do trabalho externo.
Parece evidente, assim, a forma pela qual Barbosa conduz seus atos à frente do que resta do processo do mensalão. Fora dos holofotes, com o fim de julgamento, e vendo aproximar-se o fim de sua presidência no STF, o Ministro parece empenhado em entrar para a história como quem manteve Dirceu e os outros réus encarcerados pelo maior tempo possível, mesmo quando a lei e nossa memória sobre ela esteja a pedir o contrário.
Mais que o atendimento a um direito individual, no julgamento do recurso que a defesa de Dirceu formulou ao plenário do STF estará em causa a integridade daquela memória em relação à tentativa de imposição da vontade de Barbosa. Permitirão os demais Ministros que o ocaso de Barbosa seja também o ocaso do direito?
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Fábio de Sá e Silva é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA) e Professor Substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Créditos da foto: Carlos Humberto/SCO/STF
Texto original : CARTA MAIOR
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