por: Saul Leblon
Aécio: ‘Eu conversava com o Armínio e ele me perguntou: ‘Mas é para fazer tudo o que precisa ser feito? No primeiro ano?’. E eu disse: ‘Se der, no primeiro dia’.
O relato oferecido pelo presidenciável Aécio Neves às papilas empresariais reunidas num regabofe na casa do animador de eventos, João Dória Jr, (conforme Mônica Bergamo; Folha 02/04) é uma cena ilustrativa do flerte estrutural entre o dinheiro grosso e a democracia no sistema político brasileiro.
O episódio evidencia uma etapa de pré-enquadramento de governantes , antes de a maioria da população depositar seu voto nas urnas.
O candidato busca apoio e numerário junto à plutocracia; os detentores da riqueza exigem compromissos e submissão.
Desse labirinto hostil aos interesses da maioria da sociedade tampouco escapam as candidaturas progressistas --em geral, porém, recepcionadas em um ambiente de maior formalidade e fria gentileza.
O dado novo nesse tabuleiro enrijecido pela proximidade do pleito veio de onde menos se esperava.
Esta semana, o STF formou maioria (seis votos) para proibir o financiamento empresarial das campanhas (leia a análise de Antonio Lassance; nesta pág).
Gilmar Mendes, sempre ele, travou a porta com o pé direito ao pedir vista do processo. E Fux adicionou a sua relatoria –impecável, como uma ponte de sobrevivência depois do mergulho no lamaçal da AP 470-- um prazo capaz de jogar a regra para 2018.
A novidade, no entanto, tem peso e apelo para arguir condutas e evocar novas práticas partidárias, antes mesmo de ser oficializada.
Não é pequena a mudança em curso.
O clamor por maior aderência entre as urnas e as práticas de governo tem agora o respaldo de um tribunal que parece disposto a engatar nesse tema o resgate da credibilidade afetada por excrescências ali cometidas em nome do Estado de Direito -- e cada vez mais ofensivas ao mundo jurídico, sobretudo depois do voto do ministro Barroso, no caso do mensalão do PSDB.
Do lado oposto está a soberba dos interesses plutocráticos.
Ela pode ser resumida em uma questão-síntese lançada a Aécio na noite da última 3ª feira: ‘como atrair os que votam com os estômagos’.
Aécio estava ali para se credenciar na categoria dos ‘matadores’.
Gente que faz. A golpes de tacape, se preciso for, para relevar as urgências ‘ dos estômagos’ e abrir espaço aos apetites do dinheiro.
‘Se der, no primeiro dia’, alardeia o tucano.
Ao seu lado, Armínio Fraga não era um figurante.
Armínio é a personificação da presença do dinheiro na política que o STF quer evitar.
É o ‘matador ’ evocado para injetar credibilidade onde alguns podem enxergar gabolice.
Para um conservadorismo hesitante diante da fraqueza de seus candidatos , ele é o coringa: qualquer um que eventualmente pudesse vencer Dilma em outubro teria o seu nome como primeira opção para dirigir a instituição central aos interesses do dinheiro: o Banco Central.
O segredo da sedução tem história.
O que Armínio fez ao assumir o BC em março de 1999 ainda soa como música aos ouvidos da plutocracia.
O caos econômico vivia então seus dias de gala.
O cenário desautoriza o argumento, segundo o qual, o ciclo do PSDB terminou aos farrapos em 2002, por culpa do ‘risco Lula’, precificado pelos mercados.
Em 1999 a referencia claramente era outra e o desastre em curso muito maior.
Fernando Henrique fora reeleito há cerca de três meses para um novo período de quatro anos.
Os capitais em vez de afluir fugiam do país deixando um rastro de saque pelo caminho.
As expectativas de inflação oscilavam de 20% a 50% ao ano.
As previsões para o PIB apontavam para uma queda de 4%.
A fuga de dólares pontuava cada operação na economia.
Em uma única semana, no início de janeiro --azedada pela moratória externa de Minas Gerais, sim, isso acontecia no reinado tucano-- o BC gastaria mais de US$ 6 bi na inútil tentativa de segurar a paridade.
De um lado, as reservas sangravam.
De outro, o Tesouro não conseguia vender títulos a rentistas que tratavam os papéis como lixo financeiro só digerível com guarnição extra de juros.
As projeções apontavam para uma Selic de 39,75% ao ano.
A avalanche inflacionária, cambial e fiscal derrubaria dois presidentes do BC antes de Armínio chegar ao posto, em março.
O que fez ao chegar, grosso modo, foi oficializar os parâmetros instituídos pelo dinheiro no campo de guerra.
A taxa de juro foi elevada de 25% para 45%.
O governo acionou uma amarga correção de tarifas. E o BC adotou o regime de metas de inflação: a escalada dos juros tornou-se a resposta oficial à indisciplina dos preços.
Na verdade, é um pouco mais sofisticado que isso.
Armínio deu aos detentores da riqueza, que acabavam de perder a ilusória âncora cambial, uma salvaguarda potente de juros para preservar o valor real da liquidez.
Protegido o dinheiro grosso, a a maxidesvalorização correu solta escalpelando o poder de compra dos salários, sem aviltar a riqueza rentista.
Foi assim que se consolidou o Real.
E foi assim que Armínio se consagrou como o centurião do mercado.
Algo parecido espera-se dele agora.
Ao tarifaço no lombo dos assalariados, insinuado por formuladores tucanos, corresponderiam juros robustos para salvaguardar os endinheirados da inflação decorrente.
O cardápio incluiria ainda uma volta extra no torniquete fiscal --‘’um superávit de uns 3% do PIB”-- para garantir o serviço da dívida, sem o que de nada adiantaria elevar os juros.
Há outros ingredientes no pacote tucano, como a abertura ampla às importações, com impactos sabidos no emprego e nos salários.
Mas basta a versão resumida para se compreender a relutância do próprio Armínio diante das resistências que ensejará.
A crise mundial mostrou que o tripé conservador --inflação na meta; câmbio livre; arrocho para garantir os juros dos rentistas--- não entrega necessariamente a estabilidade requerida para o crescimento, configurando-se muito mais uma armadura de defesa dos interesses plutocráticos.
No fundo, a instabilidade é um traço inerente do sistema que encoraja seus ditos agentes racionais a alçarem voos especulativos cada vez mais cegos, mais altos e inseguros.
Deixados à própria sorte, como advogam os ‘matadores’ , os mercados vão sempre operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado nível de desemprego. Sem prejuízo, no entanto, da valorização rentista, assegurada por juros associados à anemia da receita fiscal em uma economia minguante .
O que se chama de recuperação mundial nesse momento encerra doses elevadas desse paradoxo, em que a deriva da sociedade não afeta a bonança rentista.
Apenas alimenta novas bolhas no horizonte...
É o compromisso com essa receita que o dinheiro grosso busca firmar nos convescotes e tertúlias eleitorais, a exemplo do que participou Aécio na última 3ª feira.
A mesma subordinação é cobrada do governo Dilma, com outros instrumentos.
A retração dos investimentos, a especulação na Bolsa e a manipulação do noticiário econômico pelo jogral midiático incluem-se nesse arsenal.
O conjunto forma um poder normativo capaz de influenciar campanhas, desautorizar programas, desqualificar candidaturas e partidos e vetar, por antecipação, a vontade majoritária nas urnas.
O discernimento popular resistiu a esse rolo compressor em 2002, 2006 e 2010.
O momento é diferente.
A transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país envolve desafios e decisões que requerem um debate amplo e desassombrado em torno de metas, prazos, concessões e sacrifícios para repactuar o passo seguinte da história brasileira.
Esse mutirão democrático é incompatível com a persistência de interesses que se avocam o poder de interditar o discernimento social.
O compromisso do STF com a abolição desses grilhões no financiamento de campanha pode catalisar um processo de resistência democrática inédito.
Mas para isso é necessário que os principais interessados, os partidos progressistas, rompam antes com esses grilhões dentro de suas próprias fileiras.
Episódios como o do avião que interligou a biografia política do vice-presidente da Câmara, André Vargas (PT-PR), à ficha- corrida do doleiro Alberto Youssef, servem desastradamente à lógica oposta.
O jornalismo conservador tem aí um argumento irresistível para exercer a sua especialidade: pisar, bem pisado, no PT.
O mandato progressista pertence ao eleitor e ao partido.
Não pode ser desmoralizado de forma recorrente pelo intercurso entre representantes ‘imprudentes’, aviões e outros mimos descabidos com os quais o dinheiro ceva sua hegemonia sobre as prioridades do país e a coerência histórica dos partidos.
Antes mesmo que o STF torne ilegal práticas e vícios assentados no atual sistema de financiamento de campanha, o PT deveria expressar, normativamente, um sentimento que está engasgado no fundo do peito de milhares de seus quadros e militantes: basta.
Texto replicado: CARTA MAIOR
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