domingo, 24 de dezembro de 2017

Brasil sem Embraer: Temer é parte da trama

Por Herbert Claros da Silva, Renata Belzunces dos Santos e Marco Antonio Gonsales de Oliveira, no site Outras Palavras:

Há três meses, o governo, via Ministério da Fazenda, encaminhou uma consulta ao Tribunal de Contas da União para liquidar as golden share de três companhias estratégicas: Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. Agora, que a norte-americana Boeing fez uma oferta para comprar a Embraer, este mesmo governo diz que nunca venderia a empresa, terceira maior do mundo em seu setor.

Entenda o que são as golden share: origem, objetivo e exemplos.

Golden Share
Recentemente, foi veiculada a informação de que o Ministério da Fazenda solicitou consulta ao Tribunal de Contas da União para que o governo federal possa se desfazer das ações especiais que possui em três companhias estratégicas: Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. O Ministério da Fazenda emitiu a solicitação de consulta em 19 de julho de 2017 e o TCU abriu processo no final de agosto para responder o pedido [2].

Todas essas companhias foram privatizadas e em cada uma delas ficou assegurado ao governo a propriedade de ações de classe especial (golden share). Este é outro claro aceno do atual governo ao mercado financeiro internacional em busca de credibilidade e provas de alinhamento ideológico. Depois do tsunami das privatizações dos anos 90 – e outras mais pontuais no período governado pelo PT –, a história se repete como tragédia, agora aprofundando a mercantilização dos setores já privatizados e tentando privatizar o que ainda resta.

A golden share é uma classe de ação especial que confere determinados privilégios e prerrogativas aos seus detentores. São instrumentos da atividade criativa do direito empresarial com o objetivo de satisfazer as necessidades políticas e econômicas surgidas nos momentos de alteração da configuração entre Estado e mercado, como verificou-se a partir da década de 70, principalmente na Europa, com a grande transferência de empresas públicas às mãos das empresas privadas: as conhecidas políticas públicas e econômicas de privatizações. A Inglaterra foi a pioneira, a partir de 1979, quando Thatcher implementou o seu conhecido programa de privatizações, através do qual se passou a abrir à iniciativa privada setores que lhe eram vedados, adentrando o capital privado na prestação de serviços antes considerados inseparáveis do Estado. A experiência britânica é relevante, pois foi precisamente no contexto do programa de privatizações mencionado que surgem as golden share (Pela, 2008).


Para os setores contrários às privatizações, a transferência de empresas estratégicas públicas ao setor privado poderia acarretar no enfraquecimento do Estado sobre a administração desses recursos, além de comprometer outros setores fundamentais para o país, como a segurança nacional e a perda de empresas de tecnologias estratégicas. A criação da golden share teria sido uma concessão aos setores críticos às privatizações, pois garante ao Estado poderes que limitam a tomada de decisão das empresas privatizadas. Em suma, golden share são títulos acionários que atribuem ao Estado prerrogativas especiais, não proporcionais à sua participação no capital da sociedade, destinadas a salvaguardar interesses nacionais.

Sob essa mesma justificativa, o mecanismo das golden share foi usado por diversas companhias no Reino Unido. Entre 1979 e 1983, as empresas British Aerospace, fabricante de aeronaves civis e militares e de materiais bélicos; a Cable & Wireless, prestadora de serviços de telecomunicação; Amersham International, responsável pela fabricação de produtos radioativos para uso em medicina e pesquisa, e a conhecida British Petroleum, cujas atividades se concentravam no setor petrolífero.

O mecanismo foi adotado, sob diversas denominações, também em países como a França (action spécifique), Itália (poteri speciali), Alemanha (goldene Aktie e Spezialaktie), Bélgica (action spécifique), Portugal (acções preferenciais) e Espanha (regime administrativo de controle específico). No entanto, foi pouco acionado pelos governos. No Brasil, o instrumento ficou conhecido como ação de classe especial e foi implementado a partir dos anos 90, quando empresas estatais como a Vale e a Embraer entraram no Programa Nacional de Desestatização (PND). No caso da Embraer, a atividade se relaciona à defesa; na Vale, as reservas minerais têm importância estratégica para o país (JOSÉ, 2004; PELA, 2008).

Um dos casos mais emblemáticos no Brasil, envolvendo a possibilidade de acionamento da ação de classe especial, foi a intenção de compra de 20% das ações ordinárias emitidas pela Embraer, em outubro de 1999, por um consórcio francês liderado pelas empresas Aérospatiale Matra, Dassault Aviation, Thomson-CSF e Snecma. O acordo foi negociado sem o conhecimento do governo, mas que através da Aeronáutica descobriu o plano dos grupos.

Segundo artigo publicado em 21 de dezembro de 1999 pelo jornal Folha de São Paulo, a aeronáutica desvendou o plano por meio de documentos confidenciais da negociação. O grupo Bozano Simonsen havia se comprometido a convencer os controladores da empresa a venderem mais ações para os franceses em um prazo de cinco anos. Foi discutido se o negócio poderia ser qualificado como transferência de controle acionário, ou seja, passar uma indústria de importância estratégica para ser controlada por um grupo estrangeiro, com ameaça à soberania e a defesa nacionais.

O governo FHC consultou a Advocacia Geral da União, os ministros da Defesa, Relações Exteriores e do Desenvolvimento e decidiu não recorrer às ações de classe especial para intervir no negócio de US$ 209 milhões, entre a Embraer e o grupo francês. Naquela ocasião, a golden share não foi usada, mas tudo indica que teria sido caso as negociações não tivessem sido encerradas. É o caso em que a mera existência do dispositivo impediu o prosseguimento da negociação, depois de manifestada a posição contrária do governo.

Em 2009, quando a Embraer demitiu 20% dos seus trabalhadores, mais uma vez o assunto das golden share veio à tona. No entanto, como demonstraremos abaixo, esse não era o melhor caminho jurídico para impugnar a demissão em massa, dado que as ações especiais que o governo detém da Embraer não lhes garantiam tal atribuição.

A mais recente e conturbada história envolvendo empresas e governo no campo das ações de classe especial foi na União Europeia. Portugal utilizou o mecanismo em 2010 para vetar a venda da participação da Portugal Telecom na Vivo por 7,15 bilhões de euros à espanhola Telefónica. A Corte Europeia de Justiça considerou que o uso das ações de classe especial pelo governo português violou a legislação da União Europeia sobre a livre movimentação de capitais. Essa foi a mesma interpretação da Corte Europeia em outros casos em que a golden share foi acionada pelos governos.

O assunto das ações de classe especial no Brasil voltou à tona quando o governo demonstrou intenção em liquidar de vez com esses papéis na Embraer, Vale e IRB-Brasil Resseguros. Suas ações de classe especial guardam bastantes semelhanças e algumas diferenças relacionadas ao tipo de negócio e à gestão. As características comuns a todas companhias são: poder de veto à alteração de denominação social, de objeto social, de modificação acionária e, por fim, garante que qualquer modificação nela própria – na golden share – pode ser vetada pela União (Quadro 1).

As diferenças mais relevantes referem-se às prerrogativas administrativas e especiais relacionadas ao setor de defesa. No IRB-Brasil Resseguros, a União pode indicar um membro (e suplente) para composição do Conselho de Administração. Por sua vez, esse membro exercerá a presidência do Conselho. Também indicará membro (e suplente) para o Conselho Fiscal. Na Embraer, os programas militares podem ser vetados, assim como o acesso à tecnologia envolvida nesses programas. A companhia também poderá deixar de fornecer peças de manutenção ou reposição para clientes, se for do interesse da União.

A motivação da consulta, segundo o ministro da Fazenda, é estabelecer como a União poderá se desfazer dessa ação. O motivo alegado seria o fato de que a golden share desvalorizaria os ativos [3]. Em uma primeira aproximação, parece que o ministro Henrique Meireles está na defesa do mercado em um momento em que são desconhecidas manifestações do próprio mercado contra a golden share.

Em uma tentativa de compreender os motivos que levam o governo a tomar essa iniciativa, identificamos duas possibilidades: a questão fiscal e o valor de mercado das empresas.

Arrecadação fiscal: em meio ao pacote de privatizações em curso e forte ajuste recessivo, o governo poderia estar buscando arrecadar com a “venda” dessas ações. A consulta ao TCU teria como objetivo precificar esses papéis que hoje não têm preço, pois não são comercializáveis. Por quanto dinheiro valeria a pena abrir mão das prerrogativas da golden share? Quem pagaria? O fato é que o fim dessas ações também significa o fim das suas prerrogativas, que não poderiam ser exercidas por mais ninguém. Nenhum agente privado pode exercer as prerrogativas destinadas apenas à União. 


Quanto vale algo que deixa de existir assim que é comprado?
Valorização das ações da empresa: a hipótese é que o fim da golden share aumentaria o valor de mercado dessas empresas, ao diminuir as possibilidades de intervenção do governo. Mas essa classe de ação especial é apenas um dentre vários outros instrumentos que o governo tem à disposição para interferir nos negócios dessas empresas, e isso não é diferente em qualquer outro lugar do mundo. Segundo levantamento do professor Marcos Barbieri (IE-UNICAMP), todos os governos têm políticas de interferência no setor aeronáutico, com ou sem golden share. Dessa maneira, seu fim não tornaria a Embraer, por exemplo, mais capitalista do que a Boeing, que não tem golden share. Também não tornaria a Vale mais capitalista do que as suas concorrentes mundiais.

***

Essas companhias são gigantes em seus setores. A Vale é uma das maiores mineradoras do mundo, a Embraer também é terceira maior empresa aeronáutica (aviação comercial) no ranking mundial e o IRB-Brasil praticamente monopoliza os resseguros no país. A soma de suas receitas em 2016 atinge R$ 115.275,3 bilhões (equivalente a 1,8% do PIB no mesmo ano); o lucro foi de R$ 18.896,3 bilhões em 2016 e cerca de 100 mil trabalhadores são empregados pelas três gigantes. São cifras astronômicas, de fazer brilhar os olhos do mercado [quadro 2].

Essas companhias são representativas da totalidade ou quase totalidade dos setores em que atuam, foram privatizadas a preços questionáveis e vêm sendo geridas para e pró-mercado. A relação entre Estado e mercado nunca deixou de existir e vai continuar existindo. Não é conhecido argumento de que empréstimos subsidiados pelo BNDES, desonerações e outros diminuam o valor de mercado dessas empresas. O questionamento da gerência do Estado na economia privada é seletivo, portanto, quando soa o discurso da livre iniciativa, ele vem cheio de hipocrisia, pois esse mesmo mercado nunca se furta a pedir socorro e a aceitar “ajuda” quando convém.

A possibilidade do fim da golden share é um aprofundamento da privatização, pois liberaria os poucos itens estratégicos que poderiam sofrer veto do governo. O desejo de eliminar a golden share levanta a suspeita de que pode estar em movimento novos interesses por esses ativos, dessa vez por grandes empresas internacionais que tornariam a Vale, a Embraer e a IRB-Seguros meras filiais de seus negócios.

Neste cenário, é melhor que a golden share seja mantida como um resquício de soberania a ser utilizada em casos extremos. Estamos certos que essa não é uma preocupação do governo Michel Temer, assim como também é necessário ter a clareza de que a sua manutenção não altera em nada o curso de destruição dessas empresas enquanto instrumentos de exercício de interesse do povo brasileiro e de seus trabalhadores. Ruim com golden share, pior sem elas.

Essas empresas deveriam passar por um amplo debate nacional em que fossem discutidos desde o preço de suas privatizações até sua contribuição para o país, caso tenha existido. A reestatização deve ser recolocada no cardápio de possibilidades para o futuro, se assim for entendido como benéfico para o país, e não apenas para os acionistas. Os rumos dessas empresas são importantes demais para serem deixados ao sabor do mercado, o mesmo que colocou o mundo em crise diversas vezes ao longo do século XX e, mais recentemente, em 2008, quando provou suas fragilidades e foi salvo pelos recursos dos contribuintes.

Referências Bibliográficas
PELA, J. K. Origem e desenvolvimento das golden shares. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, 2008.

JOSÉ, R. D. Golden-Shares: as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto accionista minoritário, Coimbra Editora, 2004.
1- Sobre os autores: Herbert Claros é vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e Região e ex-membro do Conselho de Administração da Embraer (2015 e 2016), (herbert@sindmetalsjc.org.br). Marco Antonio G. de Oliveira é doutor em Administração de Empresas pela PUC-SP e professor da Universidade São Judas Tadeu, (professormarcogonsales@gmail.com), Renata Belzunces dos Santos é economista e cientista social, técnica do DIEESE e doutoranda no Prolam-USP (rebelsa@gmail.com)

2- O Tribunal de Contas da União abriu processo sobre o tema em 30/08/2017, sob o número 025.285/2017-3, de relatoria de José Múcio Monteiro. O acesso é restrito, de forma que não pode ser consultado pelo público em geral.
3- http://www.valor.com.br/empresas/5109590/governo-quer-fim-de-golden-share

Texto original: BLOG DO MIRO

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