terça-feira, 18 de agosto de 2015

A micareta deprimida do impeachment

Por Cláudio Gonzalez

Seria normal, em uma democracia, que a presença de centenas de milhares de pessoas nas ruas pedindo o impeachment de um presidente da República gerasse, no dia seguinte, rumores sobre a iminente queda do governo e comemorações efusivas dos líderes das jornadas de protesto sobre o “sucesso” da mobilização. Mas não é isso que estamos vendo neste 17 de agosto de 2015. Pelo contrário: nas entrelinhas dos editoriais da grande imprensa e na média da opinião dos comentaristas de política existe uma clara percepção de que o movimento pelo impeachment, apesar de ainda ser grande e barulhento, perdeu o viço, desmilinguiu-se, gerando uma situação aparentemente contraditória: o alvo dos protestos parece estar menos incomodado com o resultado das manifestações do que aqueles que convocaram as pessoas às ruas.

A seguir, arrisco alguns palpites sobre as razões para este suposto contrassenso:

Perda do poder de contágio

As manifestações deste último domingo, 16 de agosto, mostraram que ao invés de ganhar adesão de setores populares descontentes com o governo, o movimento Fora Dilma sofreu uma debandada. Ainda que as redes sociais já sinalizassem o que estaria na avenida, manifestantes menos engajados ou aqueles com algum histórico de ativismo na esquerda ficaram assustados com as cenas explícitas de elitismo, agressividade, conservadorismo e mesmo de maluquice e ignorância da primeira manifestação. Pularam fora e passaram a acompanhar o Fla-Flu político à distância. 

De março para cá, mesmo com a corrosão da popularidade do governo, nenhum novo movimento social relevante aderiu às marchas pelo impeachment. Apenas a oposição de direita resolveu escancarar sua adesão aos protestos, gerando um efeito contrário ao pretendido: agora, além de direitista, o movimento também recebe a pecha de partidário, afastando os descontentes com o governo que são refratários a políticos e partidos. Tanto nas redes quanto nas ruas ficou nítido que os protestos de ontem ficaram restritos a um perfil muito específico de manifestante.

Perfil elitista e discurso de ódio

Ao analisar o perfil médio das 135 mil pessoas que ocuparam ontem a Avenida Paulista, o Datafolha transformou em dados estatísticos o que já se via a olho nu: homens, brancos de classe média-alta e ideologicamente identificados com a direita compõem o modelito básico dos manifestantes. Mas o Datafolha traz uma novidade: 70% deles tem mais de 36 anos, sendo que 40% já passaram dos 50 anos. Não é preciso ser estatístico ou sociólogo para saber que a esmagadora maioria da população brasileira não se encaixa nem se identifica com este perfil. 

Some-se a isso as cenas repugnantes de gente pedindo a morte dos comunistas e hostilizando com violência física quem pensa diferente; declamando ignorância política e desconhecimento histórico; vociferando machismo e preconceitos de todo tipo; menosprezando os mais pobres; glorificando torturadores e figuras execráveis de extrema-direita; gesticulando saudações nazistas e apoiando uma intervenção militar. Tudo isso e mais um pouco forma um retrato bastante perturbador do que passa pela cabeça desta gente. E é justamente este perfil que torna quase impossível a adesão de setores populares às manifestações de rua pelo impeachment.

Ausência de bandeiras populares

Não é só o perfil dos manifestantes que restringe o alcance do movimento. A completa ausência de bandeiras que acenem para a melhoria das condições de vida dos brasileiros também conspira contra a neodireita que agora ocupa as ruas. Em 2013, as grandes jornadas de protestos tiveram como pano de fundo reivindicações por mais e melhores serviços públicos e, com isso, angariaram o apoio de amplas massas, sobretudo entre a juventude. 

Já o movimento Fora Dilma convoca o povo às ruas tremulando uma única bandeira: a do antipetismo e, com base nela, pedem o impeachment, agora transfigurado (talvez por reconhecimento da correlação de forças desfavorável) em um patético e risível clamor pela renúncia da presidente. Educação, saúde, transporte, cultura, direitos trabalhistas, respeito à diversidade? Nenhuma dessas pautas comparece nas manifestações. Mesmo o discurso contra a corrupção oferecido à imprensa mostra-se falso, como veremos adiante.

Pauta sem futuro 

Além de não ter outra pauta que não seja o antipetismo, o movimento Fora Dilma, por sua própria contradição interna, também não oferece perspectivas de futuro na arena política. Ainda que a ampla maioria dos manifestantes se declare eleitores de Aécio Neves, nem mesmo a entrega do poder aos tucanos surge como alternativa para os líderes do movimento. O que fazer se Dilma deixar o governo? Qual agenda de mudanças deve ser defendida? Quem deve compor o eventual novo governo? 

São perguntas para as quais a maioria dos manifestantes não tem resposta. Assim, sem oferecer pistas sobre o futuro, o movimento Fora Dilma perde-se num imediatismo inconsequente, irresponsável e sem propósito. E, mais uma vez, afasta para longe das ruas a turma que pensa e usa o bom senso, mesmo estando de mal com o governo. 

Conluio com políticos corruptos 

Quem acompanha a imprensa internacional pode ficar com a impressão que as manifestações de março, abril e agosto são uma demonstração cabal do “saco cheio” dos brasileiros com a corrupção. Mas como explicar para quem vê a coisa de fora que esta mesma turma que grita nas ruas e nas redes contra a corrupção apoia o financiamento privado de campanhas eleitorais –considerado por dez entre dez analistas como a raiz da corrupção política no Brasil – e escale como principal aliado o presidente da Câmara dos Deputados, denunciado no processo da Lava Jato por receber US$ 5 milhões de propina e que é visto e sabido nos meios políticos como um corrupto notório? 

A comunhão com outras figuras tão nebulosas e enroscadas em escândalos quanto Eduardo Cunha, como os senadores Ronaldo Caiado, Agripino Maia, Aloysio Nunes e Aécio Neves, escancara a indignação seletiva dos manifestantes e torna ridículo o discurso pela “ética” que as lideranças do movimento oferecem para a plateia. Na prática, estão dizendo que corrupção é tolerável desde que seja praticada por quem os apoia.

Ridicularização dos protestos pelas redes sociais 

Apesar da cumplicidade da grande mídia, esse lodaçal de contradições e excrecências não escapa do olhar arguto de uma parte muito influente da sociedade: os internautas e ativistas de redes sociais. Os três principais grupos à frente das manifestações (Vem Pra Rua, Revoltados Online e Movimento Brasil Livre) nasceram e cresceram na internet. Sua influência nas redes sociais ainda é muito forte, mas o extremismo de suas ideias e o paradoxo de seus atos estão os deixando isolados. 

O fato da hashtag #CarnaCoxinha (usada para desqualificar e ridicularizar as manifestações de ontem) ter alcançado o primeiro lugar entre as palavras mais comentadas no Twitter no Brasil e o segundo lugar no mundo - enquanto nenhuma tag contra Dilma apareceu sequer entre as dez mais - revela que a direita está perdendo o controle da narrativa sobre os protestos antigoverno. Muitos analistas políticos afirmam que a consolidação de um discurso no ambiente virtual tende a se refletir no mundo real a médio prazo. 

Eis mais um motivo que ajuda a entender o enfraquecimento gradativo do movimento Fora Dilma. Alguns colegas jornalistas que estiveram nas ruas ontem por dever de ofício relatam que não apenas o número de pessoas nas ruas caiu, mas também o ânimo dos manifestantes está baixo. Não se viu nos protestos de ontem a mesma empolgação dos atos anteriores. Apesar do caráter carnavalesco do protesto - reforçado por dancinhas, fantasias, bonecões e trios elétricos - a micareta direitista apresentava muitos foliões visivelmente cabisbaixos e incomodados. 

Isso se deve em boa parte à ridicularização e péssima repercussão das manifestações nas redes sociais. Ninguém se sente motivado a ir para as ruas se este gesto não for reconhecido como algo a favor do país e da sociedade. Não se deve duvidar que boa parte, talvez a maioria dos manifestantes anti-Dilma, carrega, ainda que por vias tortas, um sentimento genuíno de estar fazendo algo bom. Mas uma boa parte deles, sobretudo suas lideranças, joga deliberadamente no time do quanto pior melhor, de forma dissimulada, irresponsável e perigosa. Já que a mídia empresarial, envolvida ela também com o golpe, não cumpre seu papel de denunciar o discurso de ódio e os excessos e descaminhos antidemocráticos da manifestação, os ativistas das redes sociais estão assumindo esta tarefa.

O governo reagiu timidamente, mas reagiu 

Por fim, é preciso registrar que se as manifestações não conseguiram colocar o governo nas cordas - e a de ontem configurou-se, no máximo, num embate chocho - a explicação não está apenas na pouca força demonstrada pelo desafiante à direita, de calção verde-amarelo. O governo também soube se esquivar. Tropeçou, tomou alguns cruzados constrangedores de direita, sangrou, perdeu uma das luvas, o calção vermelho rasgou, o sparring foi ameaçado, mas o pugilista conseguiu ficar de pé. 

Ao buscar diálogo e apoio em setores menos incendiários da arena política, sair da toca, mostrar-se disposta a ouvir críticas à esquerda e também (para o bem e para o mal) curvar-se a interesses empresariais, a presidenta Dilma evitou ser nocauteada por mais uma jornada de protestos. Resta saber se ela terá apoio, disposição e esperteza política suficiente para aguentar firme até o último round. O gongo final está programado para soar apenas em dezembro de 2018. Até lá, como dizem por aí, há muita luta pela frente. E ela deve ser travada sem menosprezar o adversário mas também sem subestimar nossa vontade e capacidade de vencê-lo.

* Cláudio Gonzalez é jornalista, editor-executivo da revista Princípios.

Texto original: BLOG DO MIRO

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